[RESUMO] "A Última Ceia"， que ficou em cartaz em São Paulo até 3/11， demonstra energia extraordinária do Grupo Mexa em espetáculo que mescla o mais vulgar e o mais elevado em sua apropriação， sem blasfêmia nem medocomo desenhar tigres， do discurso religioso-cristão.

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Fundado em 2015 para trazer à cena a população em situação de fragilidade social， ou seja， a diversidade dos desvalidos， o Grupo Mexa vem ganhando alcance crescente， tendo participado de festivais importantíssimos， como o Kunstenfestivaldesarts， de Bruxelas， ou a MIT， de São Paulo.

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A energia extraordinária de seu novo trabalho， "A Última Ceia"， vem talvez do ato de fundar uma nova， e totalmente absurda， igreja —a deles mesmos.

O assombro de acontecimentos， no sentido Teatro Oficina do termo， que o espetáculo desperta a cada instante， a avenida de seduções， de nuances de atuação， de passagens entre o mais vulgar e o mais elevado， de comunhão com o público e de beleza teatral， se deve， provavelmente， aos dois pilares desse edifício paródico-religioso a cuja fundação assistimos: a) a ausência de ressentimento em relação aos traumas e à história de vida de cada fiel (ou seja， os atores e a equipe técnica)， e b) a apropriação， sem blasfêmia nem medo， do discurso religioso-cristão.

jogo do bicho da lotep de 1 hora Cena da peça quot;A Última Ceiaquot;， do grupo Mexa - Anna Van Waeg/Divulgação

Pois não há aqui， de fato， nenhuma psicanálise selvagem ou reencenação sobre o palco do trauma fundante de cada ser que se apresenta diante de nós. Não são o possível abuso ou as agruras da vida nas ruas que dão verdade ao que assistimos —ao contrário， é a prospecção de si， um daqui-para-a-frente daquilo em que os atores de fato se tornaram， ou daquilo que cada um conquistou enquanto membro desse grupo que a peça tematiza sem parar: o próprio Mexa.

É essa nova igreja， profana， trágica， briguenta， alegre， em seus ensaios， suas perdas e conquistas， disputas e perguntas， que nunca sai de cena， anunciando-se como fim ou como continuidade， gravando-se a si mesma， transformando-se em diário.

Este grupo autogerido ofereceu de fato， das formas mais diversas e matizadas， um novo início a seus membros. Por isso， ao final， a peça (e o teatro， em sua tradição) se faz a validação e o abrigo de cada um dos seus encenadores， incluindo a equipe técnica.

São eles， e a violência de vida que carregam consigo， que saem validados sem ter de enunciar seu nome e sua história， metamorfoseados pelo trabalho que eles mesmo criaram. Enquanto dividimos a ceia， é a ressurreição —política， porque vinda de um trabalho coletivo que a peça também encena— de cada ator， iluminador， assistente etc. que testemunhamos.

Se não foram justiçados pela confissão do algoz ou pela denúncia por parte da vítima， parecem， no entanto， prontos para devorar o porvir， numa presentificação sem origem nem história de seus próprios corpos， vozes， de suas habilidades para cantar， dançar， de sua potência irônica， de sua extrema fragilidade， de sua capacidade de sedução， de seu desamparo.

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Parecem chamar-nos: E aí? Querem? Não querem? Vêm? Não vêm? Estamos prontos.como desenhar tigres